Reportagem especial

Na eleição, no documento e na sociedade. Saiba por que 2018 é um ano de avanços para a comunidade trans

Pâmela Rubin Matge


Fabiane teve de dar meia-volta e desistir da balada quando já estava na porta, arrumada para a festa e na companhia dos amigos. Na hora de mostrar a carteira de identidade, o receio do constrangimento falou mais alto do que a diversão. Fabiane teve de interpelar clientes no próprio local de trabalho, um salão de beleza em que trabalha há oito anos, por se referirem a ela como "ele". Fabiane passou boa parte da vida com a vontade de chegar em uma loja e fazer um crediário. Abrir a carteira e, de lá, tirar RG, título eleitoral e demais documentos que a legitimem como realmente se vê e se expressa: mulher. Há quatro meses, isso tem sido possível, pois a cabeleireira Fabiane da Silva dos Santos, 34 anos, é a primeira trans de Santa Maria a conseguir a fazer mudança de nome e sexo no Registro Civil diretamente em cartório. Isso porque, desde 1º de março deste ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu essa alteração sem necessidade de autorização por meio de processo judicial. Também não é preciso ter passado por cirurgia de troca de sexo ou terapia hormonal, ou, ainda, apresentar laudos médicos.

- Acontecia de olharem para mim, verem a minha imagem e, no documento, ter outro nome. E, aí, que vinha o constrangimento, porque a pessoa me olhava de outra forma, com preconceito. Hoje, é um sonho realizado. Só em ter a felicidade de chegar em um banco e trocar de documentação. Esperar a carta no condomínio, e o carteiro perguntar "em nome de quem a carta?" , e eu dizer: "Fabiane". Tudo isso, para mim, já é uma grande coisa. Mínimos detalhes, que seja uma cobrança, mas que venha em meu nome. É uma proteção contra a discriminação - diz ela.

Registrados em fatos reais

Em Santa Maria, os cartórios de Registro Civil fizeram, nos últimos quatro meses, a alterações o registro de nascimento de Fabiane e de outros 12 transgêneros e transexuais, conforme levantamento da Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Estado do Rio Grande do Sul (Arpen/RS).

Em 15 de maio, o provimento nº 21/2018 da Corregedoria Geral da Justiça do Estado do Rio Grande do Sul padronizou os procedimentos extrajudiciais do Estado, dando efetividade à decisão do STF, emitida em março. Posteriormente, a Corregedoria Nacional de Justiça publicou, em 29 de junho, o provimento nº 73, que padronizou o ato no restante do país. Até então, em razão da ausência dessa normativa, cabia a cada titular de cartório realizar ou não o ato, bem como indicar os documentos a serem solicitados ao cidadão. O Rio Grande do Sul foi o segundo Estado brasileiro a normatizar a atuação dos cartórios.

COMO PROVIDENCIAR O REGISTRO

Para a alteração de nome e sexo, é preciso ser maior de 18 anos, ir a um Cartório de Registro Civil, preencher o requerimento de alteração junto do RG, CPF, título de eleitor, certidões de casamento e de nascimento dos filhos (caso houver), comprovante de residência, certidões dos distribuidores cíveis e criminais da Justiça Estadual e Federal e da Justiça do Trabalho.

Também são necessárias as certidões dos cartórios de protesto para atestar que não há pendência financeira. Feita a alteração na certidão de nascimento, o cidadão deverá providenciar a mudança do nome e do gênero nos demais documentos. 

PARA ENTRAR NA HISTÓRIA

Outra mudança relacionada à comunidade de travestis, transexuais e transgêneros chega para marcar 2018, ano que registra um dos processos eleitorais mais polarizados e conflituosos da história do país. Em meio à atmosfera de intolerância e de discurso de ódio, ainda em abril, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) regulamentou a inclusão do nome social no cadastro eleitoral, possibilitando a troca de nome no título de eleitor.

Conforme o chefe da 135ª zona eleitoral de Santa Maria, Vinícius Teixeira, apesar de poucas alterações - de 8 de abril até 9 de maio, devido ao fechamento de cadastro -, a mudança não é burocrática e reflete uma conquista social:

- Basta vir ao cartório com os documentos civis e declarar o nome social. Sem mais procedimentos. Isso reflete os anseios da sociedade. Todos devem ter vez e voz - afirma Teixeira.

De acordo com o TSE, o primeiro pleito no país a aceitar o uso do nome social contabilizou 6.280 eleitores com o nome de escolha impresso no título.

A propósito, a eleição deste ano marcou um recorde no que diz respeito à diversidade. Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), foram 53 candidaturas de pessoas trans. O número é 10 vezes maior do que no pleito de 2014. Três candidatas conseguiram se eleger.

- A eleição de candidatas trans e esta popularidade fazem com que ela sejam aceitas e admiradas. Traz um reflexo à sociedade, que passa a confiar no ativismo trans e na legitimidade de suas reivindicações. A chave de tudo é representatividade e visibilidade. Precisamos de vozes para transmitir e inserir socialmente uma população que, por séculos, manteve-se apenas na escuridão das noites - defende a advogada e ativista de questões de gênero Gabriela Cezimbra.

As mudanças em 2018

  • 12 de janeiro - O Ministério Público Federal (MPF) emitiu uma recomendação para as Forças Armadas para que o Exército, a Aeronáutica e a Marinha aceitem militares transexuais em seus quadros. De acordo com a Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão no Rio de Janeiro, a transexualidade não deve ser considerada como motivo determinante para a reforma de militares nem como incapacidade
  • 30 de janeiro - Uma resolução publicada pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) orientou que travestilidades e transexualidades não poderão mais ser consideradas doenças pelos profissionais da área. O texto foi divulgado no Diário Oficial da União 
  • 1º de março - O Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu a mudança de nome e sexo diretamente em cartório, sem necessidade de autorização judicial 
  • 8 de abril - O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) possibilitou a transexuais e travestis mudarem seu nome no título de eleitor
  • 29 de junho - O provimento nº 73 da Corregedoria Nacional de Justiça padronizou o ato no restante do país da mudança de nome e sexo em cartório, sendo o Rio Grande do Sul o segundo a acatar a normatização

NA ESCOLA, EU ERA O VEADINHO. NA RUA, O TRAVESTI QUE JÁ APEDREJARAM"
A vida inteira, me olhei no espelho e vi o que eu não queria. Na escola, eu era o veadinho. Na rua, o travesti que já apedrejaram. Não esqueço que eu estava passando de cabeça baixa na rua quando me jogaram uma pedra e me machucaram. Ainda seguem fazendo piadas a todo momento. Sofri e, desde os 14 anos, tento trocar de nome. Agora, com 20 anos, consegui. Queimei os documentos de Gabriel (antigo nome). Ele morreu e deu lugar a Roberta, que já existia".

Escolher um nome para as pessoas, desde seus nascimentos, é uma prática cultural. Via de regra, os nomes são indicados com base no sexo biológico do bebê: se for homem, nome masculino e, se for mulher, nome feminino. Porém, quando o registro não condiz aos sentimentos e comportamentos, o preço dessa "imposição" social tem duros reflexos que podem ferir a dignidade e o exercício da cidadania.

Aos 20 anos, Roberta Cardoso do Amarante, dona do relato que abre este texto, conta que nunca conheceu a mãe. Junto do pai, foi expulsa da casa de um tio ainda bebê e permaneceu até os 18 anos em um lar para acolhimento de crianças e adolescentes que vivenciaram violação de direitos. Depois, passou um tempo na Casa de Passagem, e, segundo ela, chegou a morar na rua. Sem querer mostrar o rosto, mas com orgulho de uma luta pessoal de anos, Roberta conseguiu, neste ano, fazer a troca de nome e gênero na certidão de nascimento e demais documentações. O procedimento, porém, vem de anos e foi viabilizado pela Defensoria Pública do Estado. Hoje, comemora a decisão do STF e gostaria de ajudar outras trans que também querem a troca de nome e gênero no registro, agora, em um processo menos demorado.

- Só a gente sabe o que significa um nome. É uma vitória. Queria poder ter emprego. Eu me imagino trabalhando em uma loja de roupas, para mostrar às pessoas que nos olham e acham que nunca vamos ser nada que podemos ser alguém.

NOME É DIGNIDADE

Para a advogada Gabriela Cezimbra, a mudança na documentação e o reconhecimento do nome servem para permitir o acesso ao espaço público e coibir o preconceito, que se desdobra em atrocidades contra o ser humano. Não é à toa que, a cada dois dias, uma pessoa trans é assassinada no Brasil, e o país ainda é o que mais assassina LGBTs no mundo, segundo dados da Rede Transbrasil. Um levantamento de organizações da sociedade civil mencionado pela Organização das Nações Unidas (ONU) no início deste ano informou que, enquanto a expectativa de vida do brasileiro médio é de 75 anos, a de uma pessoa trans não passa dos 35.

- O acesso à identidade é um dos direitos civis mais básicos da população trans. O seu não reconhecimento representava manter a invisibilidade, marginalidade e a ilegitimidade. O STF admitiu o direito a sua autodeterminação sem a obrigação de dispor-se ao julgamento de operadores de direito (juiz, promotor e advogados). Isso sem contar a diminuição no tempo de espera e a diminuição da discriminação.

UFSM NA PROMOÇÃO DA IGUALDADE
Maior instituição pública de Ensino Superior do interior do Estado, a Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) tem investido em ações que buscam assegurar direitos e banir o preconceito dos LGBTs no âmbito institucional. É o que afirma o vice-reitor Luciano Schuch ao mencionar que, desde 2015, passou-se a assegurar "a utilização do nome social de travestis e transexuais para servidores, estudantes e usuários, cujo nome civil não reflita a sua identidade de gênero."

Em 16 de julho deste ano, a aprovação de um Código Disciplinar Discente também expressou, em seu artigo 12, que "são infrações disciplinares estudantis gravíssimas praticar, induzir ou incitar, por qualquer meio, a discriminação ou preconceito de sexo, gênero, raça, cor, etnia, orientação sexual, religião, procedência nacional ou qualquer outro tipo de diversidade"

Um Observatório de Direitos Humanos dentro da mesma universidade mantém estreita relação com a ONG Igualdade e com o Coletivo VOE ambos voltados ao público LGBT.

- Além de um apoio especial às pesquisas com temáticas LGBTs no âmbito da instituição, destaco a atuação do Observatório dos Direitos Humanos, a implantação do Nome Social e o Código de Ética e Convivência Discente. A UFSM busca respeitar os direitos individuais e rechaça qualquer forma de discriminação, assumindo a posição radical de não aceitar intolerância em nenhum tipo de ação. Defendemos a bandeira da igualdade, buscando dar as mesmas oportunidades e o empoderamento de todos - pontua o vice-reitor.

O número total de estudantes e servidores que adotaram o nome social na UFSM não foi informado.

  • Nome civil - É como se denomina, em sua natureza jurídica, o nome que consta no seu registro de nascimento. É composto de prenome e sobrenome ou nome de família
  • Nome social - É o modo como a pessoa se identifica e é reconhecida na sua comunidade e no meio social, já que o nome civil não reflete a sua identidade de gênero


TOTALIDADE DE DIREITOS AINDA É DISTANTE
Embora alguns direitos básicos tenham sido reconhecidos, é preciso avançar. Saúde, trabalho e educação também são direitos inquestionáveis a qualquer cidadão, porém, ainda distantes à comunidade de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais ou transgêneros (LGBTTIQ).

Para a advogada e ativista de questões de gênero Gabriela Cezimbra, o acesso ao registro do nome diretamente no cartório representou uma conquista, mas outros aspectos carecem de uma legislação de respaldo.

A Anistia Internacional já considerou a homofobia uma violação aos Direitos Humanos, e, desde 1985, o Conselho Federal de Medicina retirou homossexualidade da lista de doenças, ainda assim, o Brasil é o país que mais mata gays, segundo a Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros e Intersexuais (Ilga). Na contramão desse vexatório ranking, o país ainda não tem uma lei específica que criminaliza agressões ou mortes ocasionadas pela intolerância de homofóbicos.

- Necessitamos de projetos de inclusão nas escolas, universidades, mercado de trabalho e política, de forma a diminuir a violência. Atualmente, discutem-se projetos de lei para casamento homoafetivo e criminalização da homofobia. Porém, o cenário político instável não permite uma conclusão a respeito do que será definido, e ainda dependemos do reconhecimento desses direitos pelo STF - ressalta Gabriela.

Marquita Quevedo, 51 anos, é fundadora da ONG Igualdade, que existe em Santa Maria desde 2002. Ela critica a falta de mudanças efetivas, como a criminalização da LGBTfobia, a discussão e educação sobre identidade de gênero nas escolas e espaços de cultura e memória para o combate da ignorância. Também defende a inserção de programas de saúde envolvendo apoio psicológico e assistência social:

- Ainda somos estigmatizados em políticas públicas de saúde voltadas apenas para questões de preservação de doenças como Aids e outras epidemias. Precisamos desconstruir essas estimativas, proporcionando o investimento sob outros olhares da saúde. Infelizmente, falta muita coisa. Falta reconhecimento, respeito, segurança e liberdade.

Apesar de um cenário que ainda engatinha rumo à totalidade de direitos, a militante é entusiasta e diz que é preciso representatividade, bem como as reivindicações LGBTTIQ devem ser uma causa coletiva:

- Não queremos mais viver na invisibilidade. Queremos representatividade em todos os seguimentos para uma sociedade mais equânime. Minha vida e minha luta nunca acabarão, pois luto e acredito que somos todos um. Eu acredito na democracia e em um futuro melhor. E agradeço, todos os dias, por ser Marquita Quevedo.



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